Fosse Pedra – a leveza na força da pedra
“Vaso
Moldar em torno do nada
uma forma aberta e fechada.
Palavra por palavra
o poema circunscreve seu vazio.”
Ana Martins Marques
Desde 2012 a Alva Design – estúdio de criação de Susana Bastos e Marcelo Alvarenga – desenvolve, com sutileza e rigor singulares, objetos e mobiliários que abrigam o encontro de refinados olhares artísticos e arquitetônicos. De um esmerado trajeto de dez anos surge “Fosse pedra”, exposição montada no espaço do porão do Museu Casa Padre Toledo, em Tiradentes, Minas Gerais.
A pedra – utilizada desde o início das atividades do estúdio – é um material de trabalho recorrente. As peças, produzidas em parceria com o artesão Mauro Antônio de Souza, apresentam características únicas, com veios e cores que enaltecem o potencial plástico das obras, seja pela maleabilidade, seja por texturas e tonalidades que vão de branco, rosa e cinza a azul, passando também por marrom e roxo.
A pedra-sabão, ao mesmo tempo resistente e macia, pode ser torneada até atingir uma ampla variedade de formas. As possibilidades desse material surgem como uma matriz pulsional que, nesta exposição, abriga questões que se abrem e se expandem: E se eu fosse pedra? E se a pedra fosse outra coisa? Deste vigoroso e delicado embate, a pedra surge como uma aparição imantada de vida: um ser que se transforma e vira outra coisa, um objeto animado na desmedida de um destino mineral.
Nascidos no interior de Minas Gerais, já na infância os irmãos Susana e Marcelo foram capturados por aquela topografia singular, sempre abismados por uma paisagem visual mágica. Esta mostra revela a força de gestos que capturam o relevo dessa origem. Esse universo afetivo, sensorial e imagético passa também pela Serra do Curral e por imagens que escondem uma ruína mineral. A escolha da pedra-sabão, longe de ser um acaso, encarna essa coisa mineira que conjuga alumbramento e assombro, sempre uma coisa e seu avesso.
Essa dimensão da origem também está presente em Carlos Drummond de Andrade, cuja obra invoca sem cessar a paisagem de sua mineira Itabira e inclui toda sorte de ambiguidades: no dizer do poeta, “o maior trem do mundo leva a coisa mínima”. Drummond revela também muito de sua relação com a pedra, ser mineral inanimado e animado que atravessa a origem e o destino de quem se forjou nessa terra: “pedra luzente/pedra pontuda/pedra falante”. Nessa enigmática maquinação do mundo, em que a pedra fala e ensina, Susana e Marcelo inventam objetos.
Aqui é preciso evocar outra camada dessa espécie de fantasia originária: as obras e construções barrocas, feitas a partir do uso de pedra-sabão, barro cozido e madeira policromada ou dourada. Nas esculturas de Aleijadinho a pedra tem papel de destaque, junto com o cedro-rosa: o escultor subverte o uso de uma matéria – até então utilizada para substituir a cerâmica na fabricação de vasilhames ou panelas – e lhe dá um lugar novo. Agora, o uso da pedra-sabão – matéria que por séculos serviu apenas ao artesanato mineiro – é novamente subvertido. Da relação viva atravessada pela paisagem e pela visualidade singular do barroco mineiro surge outra pedra, também como metáfora de um aprendizado, uma pedagogia da pedra. Em “A educação pela pedra”, ensina João Cabral de Melo Neto: “Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, frequentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal”.
Assim a Alva Design revela, da pedra-sabão, um mundo com complexidade e cores particulares, onde uma dimensão enigmática formula sentidos próprios, pulsando para além do funcional. De inesperáveis e improváveis encontros entre coisas e corpos e linguagens diversas, se delineia um percurso de trabalho que se revela denso e consistente.
Os trabalhos são nomeados a partir de diversas referências – de mundo, presenças e leituras diversas – e ganham títulos que ativam a necessidade de se aprender com auxílio da sensibilidade. É o caso de “Três Irmãs”, vasos que emprestam seus nomes – Masha, Olga e Irina – de uma famosa peça de teatro escrita por Tchekhov: suas silhuetas distintas com delicados bicos, torneados com esmero e habilidade, extraem sua força estética da femilidade e delicadeza.
Da observação das plantas e suas formas de renascer em camadas, de dentro para fora, surgiu a série “Brota”. Da fricção da delicadeza de uma flor em nascimento, em contraste com a solidez de uma pedra, surgem duas imagens que a princípio se contrapõem, unidas no mesmo objeto. Aqui, desde a fatura, há um esmerado trabalho conjunto com o artesão e a beleza de se conjugar camadas finas e sinuosas em um material firme e sólido. Dissolvendo fronteiras e construindo passagens simbólicas que incorporam e carregam a força de um lugar, os artistas refundam uma cartografia pela pedra.
Além do aprendizado pela pedra evocado por João Cabral de Melo Neto, o aspecto intuitivo, sensível e rigoroso da Alva Design encontra eco no trabalho de Lygia Clark – artista também nascida em Belo Horizonte. Em 1966 – mesmo ano de publicação de “A educação pela pedra” – Lygia criou “Pedra e Ar”, trabalho que deu contornos mais nítidos ao que seria depois chamado de tradição experimental da arte brasileira. Da mesma maneira, em “Amor duro” se experimentam procedimentos e gestos em tempos, espaços e formas diversas, e as potências feminina e masculina são destacadas por suas características formais como curvas, formas e texturas heteróclitas. Nas palavras dos criadores, assim se coloca essa presença ambígua e múltipla: “Nessa coleção imaginamos a possibilidade de dotar a pedra – e os objetos feitos a partir dela – de órgãos sexuais. O sexo das pedras. Uma vez assim dotadas, nos perguntamos sobre a distinção entre os sexos, definições de gênero e hermafroditismo. Conseguiríamos abolir as dualidades e imaginar seres híbridos e livres?”.
Os vídeos exibidos na exposição são a síntese de um pensamento que envolve muitas camadas gestuais e revela a dimensão da incompletude da relação com o sexual. Não passa despercebido o diálogo de “Amor Duro” com “O impossível”, de Maria Martins, escultura que revela dois seres impenetráveis e, de certa forma, híbridos. Em “O impossível” tocamos algo que alude à relação amorosa, corpos e presenças: dois seres fragmentados, privados de inteireza criam indagações táteis e plásticas sobre o encontro amoroso. Trata-se de uma obra que possui a coragem de expor o vazio e a incompletude humana. Maria Martins interpreta o desejo como movimento insaciável e rompe com a idealização do humano sexualmente ordenado, apontando o aspecto plural e fluído da sexualidade.
Assim como em “Amor Duro”, a escultura de Maria Martins exibe a força do desejo, encontrado na fronteira entre natureza e cultura e nos corpos que conjugam as noções de sedução, perturbação e inacessibilidade, delineando um corpo pulsional que também surge em “Anatomia”, em que vasos biomórficos expressam dualidades, dentro e fora, positivo e negativo, introvertido e extrovertido. As geometrias esculpidas na pedra fazem referência à anatomia vegetal e abrem um novo campo de exploração formal e imagético aos objetos, feito de gestos concêntricos e excêntricos. Como um corpo com vida, a pedra é esse material ancestral carregado de tempo e presenças.
A anatomia que vive nessa memória de um tempo geológico impresso em cada pedaço de mundo está também em “Ita”, obra em que as formas de apreensão escapam a intenções de total tradução ou captura e questões como ancestralidade são transfiguradas em vasos de pedra sabão adornados por peças de latão e madeira, em uma linha que remete aos povos originários das Américas. Na língua tupi-guarani, “ita” significa pedra e, aqui, as peças adornadas encontram funcionalidade com inventividade. Mais do que simples adereços, esses elementos permitem o melhor manuseio das peças.
Da vontade de extrair um tipo de conhecimento que só existe na matéria dura e mineral das pedras, nasce “Abacate”, coleção baseada na fruta tão familiar a brasileiros e latinos, assim revelada pelos artistas: “Sua beleza quando cortado ao meio, com sua semente única e esférica, separada da polpa por uma fina pele, faz do abacate um símbolo tropical, digno de inspiração para o design. Aqui a polpa é pedra, a semente é madeira e o latão faz o endocarpo, aquela delicada camada que separa a polpa do caroço”.
“Amorfos” revela a natureza fragmentada e singular da experiência de deixar-se afetar por lugares, paisagens e coisas encontradas no percurso, coisas concretas e metáforas inventadas. Aqui temos a transição entre o objeto utilitário e o escultórico, explorando as possibilidades diversas do material com variações entre cheios e vazios, gerando a sensação de movimento. Nessas peças, o trabalho explora a maleabilidade do material e brinca com a quantidade do vazio que caracteriza a função de um vaso. À medida que o vazio diminui, sua função vai perdendo lugar para a forma, e assim as peças transitam entre o objeto utilitário e o objeto escultórico, fazendo recordar que o corpo é essa presença também portadora de lacunas, silêncios, buracos e cavidades insondáveis.
Da pedra e do interesse em apreender com esses lugares que o corpo atravessa, e com a atração quase magnética que o metal côncavo produz, surge “Infinito”, perfeitamente encaixado em uma base de pedra sabão, fazendo do infinito um objeto-escultura. Sua função se anuncia mas não se impõe, tornando-o um objeto aberto – finito e infinito – a interações e usos diversos, como uma aparição que reflete algo dessa “estrada de Minas, pedregosa”, algo que encarna a geografia física e humana e a entidade poética, infinita e cósmica da pedra.
Simplicidade e precisão se encontram no “Cabideiro Úmero”, que ganhou o nome pela semelhança do seu componente principal (madeira braúna) com o maior osso dos membros superiores. Feito de pedra sabão apicoada, haste e aro de latão, além da madeira, o cabideiro também reverbera essa fricção entre o corpo e as coisas, entre fendas passíveis ou não de preenchimento. Isso acontece também na dupla de vasos “Corte”: é como se o desenho tridimensional virasse um desenho plano ou “em corte” como é chamado na arquitetura. Um dos vasos tem dois lados cortados; o outro vaso apresenta apenas um corte, em um dos lados, mantendo inteiro o outro lado.
Chegar em Minas Gerais é sentir o impacto da geologia e da história e de cortes que são estabelecidos também a partir daí, de proporções distintas e ambiguidades múltiplas como as reveladas em “Largo e Pico” que, de uma superfície aparentemente dura, reverbera uma dimensão de volúpia em um encontro que envolve, ao mesmo tempo, tensão e acolhida, sendo a plasticidade e a forma trabalhadas de maneira a enredar e acolher a imaginação.
Se Minas Gerais é, para Drummond, um lugar cósmico, aqui encontramos o mesmo palmilhar de um caminho, com toda a amplitude poética e experimental de um trabalho que, em cada título, abriga uma pista. “Toco” faz lembrar de imediato de “Águas de Março” e a canção automaticamente ecoa nos ouvidos: “é pau, é pedra, é o fim do caminho, é um resto de toco, é um pouco sozinho”. É como se os títulos dos trabalhos invocassem os rastros da coisa mineira na “estrada de Minas, pedregosa”, ao som do “sino rouco”, reverberação da memória que ecoa aqui também – presença e ausência, opacidade e transparência. “Fosse pedra” é, então, o exercício plástico, formal e poético do tropeço, do mistério, do encontro com o insondável. A topada no inesperado, que alcança a própria existência com o silêncio do poema: “tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra”.
Bianca Coutinho Dias